O ombro da Borboleta

O ombro da Borboleta

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Banco do castigo

Você ainda está lá.
Naquele mesmo lugar.
Anos se passaram,
você viajou,
amou,
trocou de emprego.
Alugou um apartamento novo,
mudou de cidade,
virou tio.
Você ganhou mais dinheiro,
visitou os bebês dos amigos,
comprou um carro.
Mas ainda está lá.
Você sempre volta pra lá.
Então você viaja de novo,
faz novos amigos,
entra na aula de boxe.
Muda de moda,
começa a escutar jazz,
entra na academia.
E quando vê, lá está você.
Nesse mesmo lugar,
de criança birrenta que não quer entender.
E lá você enxerga a todos,
com seus bons conselhos,
com suas falas de sempre.
Dizendo verdades, perguntando frivolidades.
"Como fui parar aqui outra vez?"
Lá você fica, porque não sabe sair.
Não sozinho, não no seu tempo.
E a dor resmunga, sabendo que você ainda vai voltar.
Você troca de carro,
casa,
vira mãe.
Você investe na bolsa,
começa a fumar.
Você faz uma tattoo,
volta a estudar,
vai a velórios e não sabe chorar,
aprende a cozinhar,
assina revistas mensais.
Mas, você ainda está ali.
Lá, no velho e conhecido lugar. 
No banco do castigo.
Até aprender.


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Tempestade

O vento sopra lá fora, uivando sua dor maciça.
Avisa-nos: vou chorar!

E é como se a cada assoprada ele dissesse:
Melancolia...ia...ia...

E vem com ele luzes escaldantes.
Sonoras, bravas!
Acordando em nós medos adormecidos...

Chora logo, lobo assustador!
Trás a paz da lágrima caída...

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A saída

Tem uma porta aberta,
e eu não quero sair.
Mas aqui dentro chove
e sou prisioneira da frieza.
Meu caldo vem sempre gelado,
porque sabem que gosto quente.
E eu não sei porque não me levanto e vou.
Talvez se eu arrancar meus olhos e meu coração
verei que aqui faz sol.
Mas quem eu seria, sem meus olhos e meu coração?
O sol sobre a pele apática não aquece.
A porta está lá, a mirar-me.
Tenho medo, e amo.
Amo e dói.
Queria que fechassem essa porta,
ascendessem a luz,
cobrissem meu corpo molhado.
Quando percebo, é escuridão
estou sozinha,
como sempre estive.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Seus olhos

Foi um menino contar-me suas ideias.
Deixou-as soltas, peladas, confusas, todas em minha mão.
Não sabia se olhava ao menino ou às suas ideias.
Eram muitas, eram vivas, eram amedrontadoras!
Criações saltitavam em sua mente,
Seus medos, alguns sonhos, 
Terrores de TV.
O menino lutava e corria,
Fugia, se escondia.
E imaginava tanto e tanto
E imaginava mais!
Muitas portas, muitos bichos, 
Fogo, faca, teia.
Não havia silêncio, nem paz.
O menino abriu seus olhos e disse 
"estou tentando abrir os meus olhos".
Eu quis chorar com ele, mas ele não chorou.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A fome do homem

Ao chorar, esquece-se dos risos de glória .
Prega-se ao peito a loucura insana e perene,
Que ressoa no eco da solidão "sempre estive aqui".

Amarguram-se os dedos frouxos, sem tensão vivaz.
Querem desistir, assim como os lábios e as bochechas.

Essa pausa de tempo, esse desconstruir de espaços,
Trazendo um lençol negro para cobrir-lhe a pele.

O sussurro da escuridão, cuidando de perspassar por todos os poros.
A complacência da mente doente.

Um humano cru.
Sem piedade nem vergonha de sua própria escória.
Alimentado por sua tristeza, de boca aberta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A sede

Quando há pouco meu coração falava percebi-me em prantos.
Meus pensamentos em textos, buscando qualquer letra que algo valha:
Não sei amar a mim.
Não sei sentir.

Estou prestes a dormir sobre esse teclado. Consumida pelo tempo, como mercadoria velha na prateleira.
Desgasto meus versos em prosa nenhuma. Converso da vida e jogo-a fora.
Num pedaço de papel em branco vejo minha desgraça.
Como perdoar esse carrasco que sou?

Os ombros. Dizem o quanto me culpo.
Por não ter nascido centenas de vezes, cada uma em um sonho meu.
Vivendo aquelas tolices todas da vida feliz de um filme qualquer.

Quanta casca cicatrizando em mim. Pedaços do que vi por ai, costurando a impessoalidade à minha pele. Cobrindo toda minha singular alforria.
Meu íntimo escondido, cansado da guerra ainda não anunciada.  
E eu quero beber dessa água minha, mas sumiu-me a boca.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Perpétua - Parte 4



O dia de Perpétua na Editora fora totalmente incomum. Não conseguiu concentrar-se em praticamente nada. Sua memória corria pelo último mês em flashes e lhe tiravam o fôlego, corando suas bochechas e lhe arrancando lágrimas tímidas.
Sua história e a de Paolo havia subido a serra. Ambos se apaixonaram perdidamente. E se encontravam praticamente todo dia após terem voltado de viagem, e quando não o faziam trocavam mensagens carinhosas e muitas vezes calorosas. Ardiam em paixão.
Paolo tinha mãos largas e fortes, e as apertava contra as costas de Perpétua fazendo-a tirar os pés do chão para encontrar sua boca. Perpétua abraçava-o com toda sua força, comprimindo seu corpo no dele, como se para unificá-los.
Mal podiam se ver e já estavam se beijando. E por dias trocaram segredos e carícias. Tomaram vinho e cozinharam juntos. Foram ao cinema. E se amaram.

Amaram um ao outro com ferocidade e delicadeza. Exalavam luzes, cheiros, toques. Satisfaziam de maneira poética e visceral seus desejos mais instintivos.

E esses desejos relembrados, passavam pelos olhos perdidos de Perpétua, deixando-a vermelha e ofegante. Logo, sua amiga Maria Clara, com quem trabalhava percebendo a situação chamou-a para um café.

- Conte-me tudo!
- Ah Clarinha – como gentilmente a chamava – é ele.
- Ele quem? Ah não! Não acredito! De novo o Paolo?
- É...eu sei...mas ele me ligou ontem...
- Perpétua! Pare de ser sonhadora! Você já sofreu muito por ele. Por que fará isso com você mais uma vez?
- Eu estava me lembrando de como tudo começou... da praia, do nosso primeiro beijo...eu sei! – balbuciou cortando as imagens que lhe formavam na cabeça, olhando para amiga repreensiva. – Sei que já vivi esse amor. Sei que já não deu certo. Sei que sou teimosa.
- Então amiga. O passado não trará nada novo.
- Mas Clara, porque ele me procurou? Por que ainda suspiro ao ver o nome dele no visor do meu celular? Minhas mãos tremem sempre depois que desligo. Meu coração arde, e eu me sinto feliz, mesmo sabendo... – Perpétua foi praticamente arremessada para uma lembrança um tanto dolorida.

Estavam no apartamento de Paolo, em São Paulo, já passara dois meses do dia que se conheceram. Na sala havia uma estante com muitos livros sobre vinho e gastronomia, um sofá verde musgo, e uma estante baixa com uma grande TV em cima. Ao lado do sofá a porta que dava para a varanda estava aberta e a cortina branca cobria apenas uma parte, dando espaço à linda vista dos prédios da região da Avenida Paulista. Uma antena em forma de Torre Eiffel colorida brilhava não muito longe, e Perpétua a estava admirando.
Era madrugada. Há um tempo Paolo andava distante, trabalhava muito e certamente se cansara de algumas meninices de Perpétua. Insegura com o afastamento, ela constantemente o consternava com ligações inoportunas, ou questões constrangedoras ou ainda com surpresas nada atrativas.
Além disso, o fogo da paixão estava já virando apenas brasa mansa. Perpétua via nos olhos de Paolo um abandono silencioso, entristecida e esperançosa, sabotava-se com essas pequenas inquietudes piorando ainda mais a situação.

- Você anda distante...- balbuciou Perpétua pegando seus pertences na sala, enquanto ele terminava de se vestir.
- Ando trabalhado muito. Estou cansado.
- Sim...mas digo, não tem me ligado. Anda sumido... Mudou alguma coisa entre nós? – ela arrumou os cabelos, torcendo-os até formar um coque, e deu um nó com os próprios fios castanhos claro.
Paolo apareceu na sala, ficou perto dela por alguns instantes.
- A verdade é que... – e afastou-se em direção a cozinha – eu não estou mais apaixonado por você.

Perpétua balançou a cabeça, como para afastar maus pensamentos. Estava de volta ao lounge de onde trabalhava. Olhou para Maria Clara, ela estava esperando uma continuação.

- ...mesmo sabendo que ele não sente nada por mim. E foi bem claro quanto a isso.
- Calma...não precisa ficar lembrando das coisas ruins também. – Clara percebia a mudança na feição da amiga. – Você já superou isso!
- Será mesmo Clarinha? – resmungou Perpétua olhando para suas mãos e para a xícara de café já frio. Seus olhos lacrimejaram, dando um tom rosa para seu nariz e bochechas.
- Per, não fique assim. Ele quem ligou, certo? Como foi? O que ele disse? Anime-se!!
- Não, você tem razão. – Perpétua limpou os olhos e se levantou, anunciando que iria voltar a sua mesa – Eu preciso entender de uma vez por todas.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Pequenos contos para sonhar - 1 - Claire e Brian

Já passava das seis da tarde e Claire, de estatura média e cabelos pretos como jabuticaba estava à porta de um café, esperando por sua companhia.
Vestia uma calça jeans vermelha e uma blusa e botas pretas. No pescoço enrolava-se um echarpe branco e tinha às mãos um livro de bolso, Antígona. Seus olhos contornados perfeitamente com lápis preto traziam ainda mais força à sua expressão de interesse por aquelas palavras do exemplar de Sófocles.
Ela estava em pé, encostada no batente da porta, imersa em um mundo paralelo.
Nessa mesma rua, Brian, um homem também de cabelos negros e lisos, andava a passos médios pensando no difícil dia que tivera. Ele estava com a barba por fazer e vestia uma camiseta verde escuro e jeans. Sua expressão era aflita, mas não sofrida.
Brian se aproximou do café onde estava Claire. Pensou em tomar algo, e decidiu, em um impulso, entrar. Resoluto, mal vira a presença de alguém bloqueando metade da passagem e no momento em que trocou a direção de seu corpo fez-se brecar bruscamente.
- Desculpe-me. Não a vi! - disse ele, logo quando ela levantou seus olhos assustados.
- Ah... Oi. Tudo bem. Você só precisa tomar mais cuidado. Levei um susto. - respondeu aflita, buscando relembrar a página perdida.
Brian acenou com a cabeça e deu um meio sorriso declarando sua falta de jeito e atenção. Entrou. Pediu uma cerveja.
Claire aproveitou a interrupção e olhou para o relógio.
- Nossa, seis e meia? Sue está atrasada demais. - pensou.
Passou seus olhos pelas mesas de dentro do café, Sue certamente poderia ter chegado sem que ela percebesse, pois estava absorta em sua leitura. Não a encontrou, mas viu o homem com quem acabara de trocar meia dúzia de palavras. Ele havia sentado junto ao balcão, e havia algo intrigante em como ele brincava com o saleiro e o paliteiro. Não era graça, nem tristeza. Mas os objetos ganhavam em suas mãos certa personalidade. Claire podia quase afirmar que ele estava dando vida à eles, e interagindo com eles. Instintivamente, ela riu.
Brian percebeu estar sendo observado e olhou para trás.
Outro momento estranho aconteceu entre eles. Claire sentiu-se pega de surpresa, e transpareceu em sua feição vergonha, arrependimento e culpa. Brian também revelou certa indisposição e vergonha em seu olhar.
Antígona foi fechado, Claire arrumou a postura, respirou fundo e foi até o balcão do bar. Sentou-se ao lado de Brian e antes que pudesse pronunciar uma só palavra ele olhou para ela e sorriu.
- Não a culpo por rir.
- Desculpe-me.
- Não há pelo que se desculpar. - e pegou o saleiro de volta à mão - esse é o Sr. Salgado, e esse é o Sr. Palitão - pegou também o paliteiro e brincou em direção à ela.
Claire riu deliberadamente, anunciando também seu alívio.
- Então você está acompanhado dos seus dois bons amigos, suponho.
- Oh, sim. Eles são os melhores. Se a vida está sem sal, este aqui tempera, e se está... bem...- ficou procurando como o Sr. Palitão poderia ajudá-lo em qualquer coisa na vida - bem...ele pode pegar petiscos para você, quando a fome apertar e não quiser sujar seus dedos!
Os dois riram, um pouco mais alto do que normalmente fariam.
- Eu sou Claire. Muito prazer.
- Sou Brian. - ambos deram as mãos em cumprimento.
- O que faz aqui Claire? - interrogou ele, colocando de volta aos seus lugares originais os potinhos de sal e palito.
- Bem, eu tinha um encontro. Mas minha amiga provavelmente não vem mais.
- Entendo.
- E você?
- Bom, como você mesma viu, decidi em cima da hora entrar e tomar alguma coisa. Minha cabeça anda meio cheia.
Um silêncio prosseguiu por alguns segundos.
- Posso acompanhá-lo na cerveja? 
- Claro, será um prazer! Garçom, por favor, traga outra cerveja para essa moça.
Durante algumas horas Claire e Brian conversaram sobre diversos assuntos. Brian contou sobre seu trabalho com softwares e tecnologia e como vinha enfrentando certa dificuldade em lidar com pessoas acostumadas com relações cibernéticas apenas. Falou da pressão que sentia quando os resultados não eram os esperados, e principalmente de como aquele dia tinha sido sofrido ao perderem um bom cliente. Claire, por sua vez, falou do seu trabalho como dubladora de filmes e cantora, e como entendia de maneira artística essas novas formas de relacionamento virtual. E ainda, como ela achava que Brian deveria encarar esse momento profissional de forma mais positiva, observando as falhas que os levaram a perder tal cliente, para poderem então melhorar suas fraquezas.
Ambos escutaram empaticamente o outro. Abriram seus corações amigavelmente, como se já se conhecessem há séculos. Divertiram-se verdadeiramente.
- Bom. Já é tarde. Preciso ir. - antecipou-se Claire ao olhar o relógio marcando nove horas e vinte minutos.
- Nossa. Como a hora passou rápido.
- Pois é. Foi realmente divertido. Bom...até mais.
- Espere. Deixe-me anotar seu telefone, ou seu email. - Brian falou, com uma insegurança notável.
Porém, Claire já havia se decidido.
- Desculpe-me. Não.
Brian a olhou cismado.
- Não é nada pessoal. - adiantou-se Claire. - uma promessa boba...não posso criar expectativas...espero que entenda...foi um prazer conhecê-lo...
Levantou-se e saiu, aflita, perdendo-se em meio as pessoas que caminhavam.
Brian piscou demoradamente, estava confuso.
Ao olhar o balcão, no entanto, saltou aos seus olhos um livro, pequeno, usado. Em sua contracapa estava escrito: Claire Sullivan, Escola de Dublagem Gioconda. 

  

Sê inteiro

"Para ser grande, sê inteiro". Dizia o poeta facetado.
Parece-me torto. Não incorreto! Mas contrário.
"Sê inteiro, para ser grande".
A importância da intenção, devidamente posicionada.
Não dá para querer ser inteiro, pensando em ser grande.
Para ser inteiro, há de parar de pensar. Há de ser.
Inteiro.
Ser todo o seu ser.
Íntegro.
(Lembra-me um pouco frases de Teatro Mágico. "Difícil é ser tão simples".)
Difícil é ser inteiro.
Aprofundar-se em si. Cobrar-se paciência.
Entender-se, desculpar-se.
Criar laços. Cuidar. Fazer.
Seguir verdadeiramente o seu coração, com ações.
Sem impulsos, mas movimento.
E tentar, toda e cada vez, o que for necessário.
E tentar mais uma vez.
E tentar sempre.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Conto de um amor bandido

"Que descuido andar descalça em vidros quebrados" pensou ela tirando os sapatos. "Dê logo um jeito nesses pés!" conversou consigo mesma.
Ao longe só se via uma menina com calçados nas mãos pisando em cacos. Havia outros caminhos, e todos se perguntavam o que a teria levado até ali.
A rua estava iluminada apenas pelas luzes fracas dos postes, e o tom era cinza molhado.
Ela não olhava para os lados. Ninguém se aproximou também.
"Dessa vez não corto os pés", pensou, "sei como me proteger".
O fim foram pés sangrentos e lágrimas desajeitadas.
Ela estava sozinha, e via os sapatos jogados em meio aos vidros.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

É

Um singelo movimento
Tão atento
Sentimento se revela 

Emanam dos poros
Luzes, calor
E veste o corpo asas de cisnei negro

Dança o presente pelas veias
Salta aos olhos vontade
E nada é alheio

Decidido a viajar folhas
Faz-se vento 
Momento, sedento

Solta
E rasga a pele
E traduz grandeza
E é.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Escuridão

Universo do verso.
Eu valso, mas não sei onde vou.
Quando vejo habito salões vazios.
E sinto...
o sopro,
o sussurro surdo,
o santo solto. Louco.
E sinto tanto.

Essa tristeza minha.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Assassino de sonhos

Sou um pouco refém.
Um pouco vilã também.
Mas é o medo que me detém.
E sem esse medo, sou quem?

Perpétua - Parte 3



Ansiosa Perpétua revirou sua bolsa a procura do mesmo perfume que usara quando conheceu Paolo. Já estava alguns minutos atrasada e se demorasse mais certamente chegaria tarde no escritório. Ela trabalhava em uma Editora, e, por não ter sua graduação completa, ainda era estagiária. Gostava de cumprir rigorosamente os horários e tarefas que lhe atribuíram, pois desejava ser contratada. Seu coração era preenchido por sonhos e histórias e almejava poder contá-las todas. Ou, pelo menos, ler todas as lindas histórias que também aguardavam por seu espaço nas prateleiras. Todavia, perguntava-se se aquele perfume não valeria alguns pontos a menos em sua reputação profissional, afinal de contas, era o aroma do primeiro encontro, o deleite de um amor, era o néctar daquela memória querida, repetida incessantemente durante as saudades. Não estava na bolsa.
Mexeu feito menina em suas gavetas. Blusas, calcinhas e meias estalavam no ar feito fogos de artifício. Sua tia Amélia entrou no quarto.
- Você não está atrasada não?
- Estou tia...mas não encontro meu perfume...
- Vai atrasar por conta de um perfume Perpétua? Você ainda nem tomou café! E acho que nem dá mais tempo...
- Eu sei, eu sei... você está certa. – desistiu desanimada. Deu um beijo em sua tia, apanhou seus pertences para o trabalho e para a faculdade e saiu, pegando apenas umas bolachinhas de maisena para comer no caminho.

Mais um ônibus, mais uma espera. Talvez fosse esse o lema de quem precisava de transporte público em São Paulo. O trânsito judiava da alma das pessoas. Não havia outro jeito, e esse aguardar era também parte da rotina de Perpétua. Enquanto via o abrir e fechar dos faróis e o passar incansável dos carros ela pode voltar a seus pensamentos.
- Que bom que você não foi embora – Paolo falou aparecendo repentinamente em frente à Perpétua.
- Que susto! Você tem sempre esse costume de surgir do nada?
- Às vezes. Gosto de surpreender. Assim consigo receber reações mais verdadeiras das pessoas. E então, como você se chama?
- Perpétua. – respondeu em voz baixa, mas firme. – e você?
- Lindo nome. Sou Paolo. Você é daqui?
- Você é um tanto intruso e curioso. E direto demais.
- Acho que sou. Você é de onde?

O ônibus chegou. Perpétua entrou ainda imersa em seus pensamentos. Sentou-se perto da janela.

- Moro em São Paulo. E você?
- Eu também! Moro perto da Paulista.
- Mas você é de onde?
- Notou meu sotaque foi? Sou baiano.
- Entendi.
- Você não está muito a vontade está? Você é linda sabia? Claro que sabe. Você parece nova. Quantos anos tem?
- Você é cheio de perguntas. Tenho 23. Quantos anos você tem?
- Eu sabia. Você é muito jovem.
- Não vai responder?
- Sou quase 10 anos mais velho! Tenho 32.

Perpétua notou naquele instante o interesse de Paolo abalar. Talvez ele já imaginava que a diferença das idades causaria desentendimentos e interpretações erradas. Mas para Perpétua o interesse só aumentara. Não era um menino a abordá-la, era já um homem, cheio de experiência, charme e maturidade.

- Porque achou que eu o estava paquerando? – mudou de assunto rapidamente.
- Eu não achei. Você estava... Talvez inconscientemente...  – Paolo riu traduzindo tristeza e charme em seus lábios. Depois sorriu abertamente, olhando para Perpétua como se a estivesse convidando a compartilhar um pouco do que era só seu. Ela recebeu seu olhar, e devolveu-lhe a graça sorrindo com dengo.
- Vamos sentar naquelas pedras? – perguntou Paolo aflito.
- Tudo bem. – arriscou Perpétua, sabendo que abrira uma porta perigosa. A confiança.

O ônibus parou bruscamente. A sonhadora fora forçada a abandonar a praia, o luar, o mar e as pedras que compunham a imagem daquele homem por quem já se apaixonara. Não sabia como, mas os olhos castanhos escuro de Paolo tinham penetrado em sua alma, tinham sentido seu sangue, seus almejos, suas feridas, antes mesmo de começarem verdadeiramente a conversar e se conhecer.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Desconexções

Em paz, respira meu coração
mais prudente em si
vê sofrer sozinhos os sentimentos


já fora de mim

Quebraram-se as pontes
das lágrimas e da dor
e hoje do abismo mirante
ao longe observo lutar
minha alma
e um outro olhar

Não podem me atingir.
Desliguei-me de mim.


quarta-feira, 26 de março de 2014

Perpétua Parte 2



Perpétua acordou mais cedo do que de costume, queria ter tempo para escolher bem sua roupa, tomar um banho demorado, certificar-se de pegar a maquiagem e o desodorante para repassar tudo depois do expediente de trabalho e ainda tentar ensaiar suas falas casuais para quando o visse. Ela estava ansiosa e confusa. E não era para menos, há uns dois meses antes eles tinham vivido uma paixão arrebatadora, um romance inesperado e completamente envolvente.
Paolo vira Perpétua de longe, já passara uma hora da meia noite de final de ano, ela vestia uma saia curta predominantemente vermelha, uma blusa branca e vinha descalça pela praia com alguns amigos. Ele também vestia branco, uma bata praiana, short e chinelos de dedo. Sua barba por fazer e seus cabelos negros e lisos já um tanto bagunçados pela festa. Ambos felizes, comemorando a promessa de um recomeço cheio novidades e expectativas.
Mal Perpétua chegou ao quiosque e já foi abordada por Paolo.
- Você estava me olhando. – sussurrou Paolo perto do ouvido de Perpétua.
- Eu? – respondeu de pronto, virando-se para ver quem estava fazendo tamanha afronta.
- Ah, não diga que não estava. - insistiu com certo charme.
Perpétua fez uma expressão de desdém e olhou ao redor procurando seus amigos.
- Claro, fiquei para trás. – comentou baixinho.
- Quer que eu ajude a encontrá-los?
- Você ainda está ai?
- Achei que você ficaria chateada em me perder nessa multidão. Estou lhe dando mais uma chance de assumir que estava me olhando. Você gostou de mim, foi? – falou num tom de brincadeira, revelando seu sotaque baiano.
- Como você é presunçoso! – disse ela, sentindo-se um pouco mais a vontade ao lado daquele estranho. – Lá estão eles.
- Não vai nem me dizer seu nome?
- Mas não era eu quem estava olhando? Eu deveria querer saber seu nome. – retrucou já longe, indo de encontro a sua turma, sem se preocupar em ouvir qualquer outra fala dele. Paolo acompanhou-a com o olhar e sorriu.
- Quem era aquele? – perguntou Renata, a mais próxima das amigas de Perpétua.
- Não sei. Um estranho com uma cantada um tanto diferente.
- Daqui ele parece bonito...
- Ele é. Mas disse que eu estava olhando para ele, e eu nem o vi quando chegamos.
- Eu teria visto! – riu Renata – ele está olhando para cá!
Perpétua esperou uns instantes e virou disfarçadamente o rosto observando-o de canto. Ele levantou seu copo de cerveja brindando a ela, que rapidamente voltou sua cabeça na direção oposta.
- Ele me intriga...
- Hummm! Vá lá conversar com ele amiga! Hoje é dia de comemoração e não temos nada a perder.
- Eu não vou. – e olhou novamente para trás. Ele não estava mais no lugar de antes, e nem por perto.

(Continua...logo mais logo menos)

terça-feira, 25 de março de 2014

Perpétua

Perpétua era uma menina tola. Tinha 23 anos e um box do Almodóvar nas mãos. Corria para pegar o  ônibus das 23h para poder chegar à casa de sua tia, onde morava na zona sul de São Paulo. Seu casaco vermelho comprido dançava ao vento a cada passo de pressa. Ela ia sorrindo, pensando ser seu mundo o mundo real, e por isso era tola. O mundo não foi feito para Perpétuas.
Chegou ao ponto ofegante, o ônibus esperava pacientemente. Olhou para os filmes do famoso diretor espanhol, belas histórias, cheias de drama e paixão. Ah, como a vida tintinava em seu coração.
Lembrou de sua noite, do reencontro com Paolo.
Era início de outono, quando o frio já sopra sua chegada, mas o sol ainda insiste em aquecer as pessoas em que toca. Perpétua, por ser uma romântica incurável, não conseguia não amar essa linda estação.
Ao chegar em casa, aconchegou-se debaixo de seu edredom, e reviveu em pensamentos toda sua noite encantada.
Paolo ligara um dia antes, dizia estar com saudade. Eles já se conheciam há alguns meses. Conheceram-se, mais especificamente, no verão, na virada do ano de 2002 para 2003.
- Alô? Ainda se lembra de mim?
- Oi..ah...claro! Como não...digo, lembro sim! - respondeu atrapalhada.
- Faz tempo que não nos falamos, mas queria saber como você está...
- Estou bem, você sabe, estudando, trabalhando...e você?
- Estou bem também. Queria te ver.
Nesse momento um estalo soou no ouvido de Perpétua, como um zunido, impedindo-a de ouvir mais qualquer coisa.
- Você ainda está ai? Se não quiser me ver tudo bem...
- Oh, não! Claro, vamos nos encontrar! - disse acelerada - fiquei distraída com...
- Quando você pode? Preciso conversar com você!
- Amanhã a noite estou livre... - no instante em que falou culpou-se por ser tão cedo a sugestão - digo, tenho uma aula vaga, mas podemos deixar para semana que vem também.
- Amanhã está ótimo para mim! Onde passo te pegar?
Desde essa ligação tudo havia se transformado para ela.

(Continua...)

quarta-feira, 12 de março de 2014

Hércule sozinho

Deu de ombros.
Hércule sabia que não iria muito longe. Já havia vasculhado respostas durante o dia todo. Não encontrara nada, e começava a se contentar com o fato de que jamais encontraria.
Sua tristeza era ele mesmo, parte indissociável de seu ser. Sem ela ele não era ninguém.
A tristeza dava a Hércule um status de homem triste: lobo solitário. Presenteava-o com certo mistério e de certa forma isso atraia os outros, curiosos, ingênuos...
Sua dor era também sua identidade.
Mas estava quase insustentável viver dentro de si mesmo. Seu choro ecoava piedade. Suas lastimas eram vazias e o judiavam ainda mais pela culpa.
Estava cansado demais. Exausto para identificar-se novamente, para reconhecer-se e perder o controle que pensou ter. Preferia o comodismo de sua solidão.
Deu de ombros.
E seu sofrimento foi abraçando seu corpo, seu sangue. Foi inventando cânceres.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Gira o mundo

Inquietos tropeçam os dias. Não sentimos até senti-los.
Transformam encontros, mudam sentidos, tiram de nós ou nos dão vínculos eternos.
Falam línguas ocultas. Remoem passados e medos. Nos imergem em dor.
Mudam. Nosso olhar, nossa vida, nosso cerne. Encontram nosso íntimo e o estapeia.
Fazem-nos encarar verdades atrozes. Cospem vaidades. Descobrem covardias. 
Logo se vão. As vezes deixam saudades letais, outras expectativas insanas. As vezes não deixam nada.
Não somos os mesmos nunca mais.

Contundências

Pensar.
Consome meus dias e noites. Serei eu um viciado em sofrer?
Reluto numa áurea de infelicidade.
Escolho ser infeliz?
Pelo que minha alma anseia?
Porque não suporto a mim? Ou é o suportar enfastiante e me engano?
Estou a percorrer caminhos inócuos e por isso me amarguro ou me amarguro na dura missão de evoluir?
A felicidade, é enfim, essa concepção subjetiva de evolução?
É feliz quem é simples? Ou abandonam suas vaidades para sentir então mais nada?
Enfado. Cansaço.
Para que serve a felicidade senão para morrer?
Morrer talvez seja a felicidade. Ser livre de ser humano.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Abandono

E ao pé da amoreira, a buscar frutos doces, queixou-se de sua tristeza.
Conversou com os pés descalços sobre sua infortuna herança de maus sentimentos. Deixou regar a grama lágrimas da nascente de seus olhos, e pode acalmar seus soluços nas amoras.
Não sabia apartar-se de quem era. Entendia a força com que se agarrava às suas expectativas e desfechos de si mesma. Percebia o mal que lhe faria soltar-se.
Como viver sem aquele medo tão conhecido?
Como consentir partir a angústia amiga? Companheira de tantos contos... impulsionadora das sublimações mais consistentes de mim?
Melhor assim. Assim antigo. Assim costumeiro. Assim assim.
Queixou-se mais algumas vezes, e talvez outras, não sei...
Não sei o destino das amoras, mas passos em passos,
remorsos atirados, caminhos esquecidos,
parti.

À sua imagem

Treme o pulso,
Inflama o ar dos pulmões,
Carecem esperanças loucas...
Saudade.

Ver-te, apenas.
Mirar-te retrato,
Sem vida, sem palpitação.

E recordar nas mágoas mesquinhas
Teus lindos olhos,
Tua face expressiva
E meu eterno
Amor.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A esperança de O'hara

Hoje entendo Scarlett O'hara. Entendo a sutileza de onde emana sua força.
Entendo seus olhos um tanto decepcionados, não tristes, mas embriagados, arrebatantes.
A valentia está além da coragem. Ela perdoa a própria loucura e busca interminavelmente melhorar a vida - e curar os nervos. Custe o que custar.
Scarlett sente à mão a terra, e faz promessas.  E são seus olhos, tão imergidos em seu espírito, que nos contam sua dor, sua solidez.
Distante da realidade do filme percebo esse enrijecimento manifestar em mim.
Esse engasgar realidades, e continuar seguindo.
Por isso, talvez, diz-se que vamos ficando maduros, até apodrecer.
E eu me nego, mas me curvo...




segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O canto do mar

Sentiu-se frio.
Esquecera da cor das paredes, dos ímãs da geladeira. Não se lembra dos quadros, nem dos lençóis. Não consegue recordar os livros... os livros! Alguns arriscavam sair da memória...sobre vinho, talvez? A estante antes tão conhecida se dissipa, tristemente desvanece.
Ah, a saudade. E o tempo destruindo os últimos vestígios da sua presença.
Fechou os olhos. Percorreu por entre os momentos, distantes, remotos, relutantes.
Era como olhar um álbum antigo. Fotos quase apagadas, com sombras, borrões e cores invertidas.
Deteve-se em uma, observou-a. Apertou os olhos e esperançosamente, lá estava ela.
Cabelos negros, lisos, o olhar profundo. Quase como um reencontro, ele sorriu.
Quantas coisas se passaram! Quanto para dividir!
Um carinho, um afeto lhe afagou o peito. Seu rosto, seus lábios, agora tão reais. Tocá-los é o afastamento.
Tudo é apenas uma lembrança. Esse encontro inócuo é também deliberadamente improvável.
Continentes de contos os separam. Ele sabe. Mas sonha.
E sente o afoguear com deleite. Esse formigamento doce, como um aviso inesperado de chegada.
É seu jeito de roubar esse amor, como se fosse desde sempre seu, e só seu.
Como se a ninguém ela pudesse amar tanto.
Suspira, e está seguro, por mais um tempo, de deixar lavar as águas, a memória-relíquia da sua história mais viva.